“SE É BOM OU SE É MAU...”
CRÔNICA DE: RUBEM ALVES
Quando eu contava estórias para a minha filha – ela era bem pequena ainda – tinha uma pergunta que ela sempre me fazia: “Esta estória aconteceu de verdade?” Eu não tinha jeito de responder.
Se fosse o Peter Pan, adulto, tal como aparece Hook – A volta do Capitão Gancho, eu diria logo que era só uma mentirinha sem importância que eu estava inventando para que ela dormisse logo e eu pudesse voltar a me ocupar das coisas importantes do mundo real do dinheiro, da política, do trabalho, das rotinas da casa. Diria a ela que o livro que me importava, aquele que eu realmente lia, livro de cabeceira, era a agenda de capa verde. Nas suas páginas se escrevia a realidade. Mas ela era muito criança - com o tempo cresceria e aprenderia a ler a literatura do real que só pode ser lida nas agendas. Por enquanto, ela podia se entregar as palavras mentirosas das estórias, só para que o sono viesse mais depressa....
Mas eu não era o Peter Pan adulto e o que eu tinha para dizer, pois achava complicado demais para a cabecinha dela. O que eu gostaria de dizer a ela e não disse é que as estórias que eu contava não aconteceram nunca para que acontecessem sempre. A TERRA DO NUNCA é a TERRA DO SEMPRE, que existe eternamente dentro da gente. Já o que aconteceu de fato, documentado, fotografado, comprovado pela ciência e escrito com o nome de História – isso aconteceu do lado de fora da gente e, por isso, não acontece nunca mais. Está morto e enterrado no passado, e não há feitiço que faça ressuscitar. Mas aquilo que não aconteceu nunca, aquilo que só foi sonhado, é aquilo que sempre existiu e que sempre existirá, que nem nasceu e nem morrerá, e a cada vez que se conta acontece de novo....
Se ela me tivesse feito a pergunta de um jeito diferente, se me tivesse perguntado se acreditava na estória, ah!, eu teria respondido fácil: “Mas é claro que acredito!” Pois eu só acredito no que não aconteceu nunca, no que é sonho, pois os sonhos, é disto que somos feitos.
A estória da Branca de neve não aconteceu nunca – mas todos nós somos sempre, uma madrasta que se vê triste diante do espelho e manda a menina, nós também, para ser morta na floresta. A estória de João e Maria não aconteceu nunca, mas em toda a criança existe a fantasia terrível do abandono. A estória de Romeu e Julieta não aconteceu nunca, mas queremos ouvi-la de novo, pois dentro de nós existe o sonho do amor puro, belo e imortal. E é por isso que sou incuravelmente religioso, porque nas estórias da religião, que não aconteceram nunca, os sonhos e pesadelos da alma se acham refletidos. Acredito porque sei que são mentiras. Se fossem verdades, não me interessariam.
As estórias são contadas como espelhos, para que a gente se descubra nelas. Os orientais são os grandes mestres nesta arte, esquecida dos ocidentais porque cresceram, como o Peter Pan do filme Hook, e passaram a acreditar somente naquilo que a agenda conta, sem perceber que, porque ela diz a verdade, mente.
Quero contar para vocês a estória que mais tenho contado – não aconteceu nunca, acontece sempre. Um homem muito rico, ao morrer, deixou suas terras para os seus filhos. Todos eles receberam terras férteis e belas, com a exceção do mais novo, para quem sobrou um charco inútil para a agricultura. Seus amigos se entristeceram com isso e o visitaram, lamentando a injustiça que lhe havia sido feita. Mas ele só lhes disse uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”. No ano seguinte, uma seca terrível se abateu sobre o país, e as terras dos seus irmãos foram devastadas: as fontes secaram, os pastos ficaram esturricados, o gado morreu. Mas o charco do irmão mais novo se transformou num oásis fértil e belo. Ele ficou rico e comprou um lindo cavalo branco por um preço altíssimo. Seus amigos organizaram uma festa porque coisa tão maravilhosa lhe tinha acontecido. Mas dele só ouviram uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte seu cavalo de raça fugiu e foi grande a tristeza. Seus amigos vieram e lamentaram o acontecido. Mas o que o homem lhes disse foi: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” Passados dez dias o cavalo voltou trazendo dez lindos cavalos selvagens. Vieram os amigos para celebrar esta nova riqueza, mas o que ouviram foram as palavras de sempre: “ Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte, o seu filho, sem juízo, montou um cavalo selvagem, O cavalo corcoveou e o lançou longe. O moço quebrou uma perna. Voltaram os amigos para lamentar a desgraça. “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”, o pai repetiu. Passados poucos dias vieram os soldados do rei para levar os jovens para a guerra. Todos os moços tiveram de partir, menos o seu filho de perna quebrada. Os amigos se alegraram e vieram festejar. O pai viu tudo e só disse uma coisa: “ Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá...”
Assim termina a estória, sem um fim, com reticências.....Ela poderá ser continuada, indefinidamente. E ao contá-la é como se contasse a estória de minha vida. Tanto os meus fracassos quanto as minhas vitórias duraram pouco. Não há nenhuma vitória profissional ou amorosa que garanta que a vida finalmente se arranjou e nenhuma derrota que seja uma condenação final. As vitórias se desfazem como castelos de areia atingidos pelas ondas, e as derrotas se transformam em momentos que prenunciam um começo novo. Enquanto a morte não nos tocar, pois só ela é definitiva, a sabedoria nos diz que vivemos sempre à mercê do imprevisível dos acidentes. “SE É BOM OU SE É MAU, SÓ O FUTURO DIRÁ”
Quando eu contava estórias para a minha filha – ela era bem pequena ainda – tinha uma pergunta que ela sempre me fazia: “Esta estória aconteceu de verdade?” Eu não tinha jeito de responder.
Se fosse o Peter Pan, adulto, tal como aparece Hook – A volta do Capitão Gancho, eu diria logo que era só uma mentirinha sem importância que eu estava inventando para que ela dormisse logo e eu pudesse voltar a me ocupar das coisas importantes do mundo real do dinheiro, da política, do trabalho, das rotinas da casa. Diria a ela que o livro que me importava, aquele que eu realmente lia, livro de cabeceira, era a agenda de capa verde. Nas suas páginas se escrevia a realidade. Mas ela era muito criança - com o tempo cresceria e aprenderia a ler a literatura do real que só pode ser lida nas agendas. Por enquanto, ela podia se entregar as palavras mentirosas das estórias, só para que o sono viesse mais depressa....
Mas eu não era o Peter Pan adulto e o que eu tinha para dizer, pois achava complicado demais para a cabecinha dela. O que eu gostaria de dizer a ela e não disse é que as estórias que eu contava não aconteceram nunca para que acontecessem sempre. A TERRA DO NUNCA é a TERRA DO SEMPRE, que existe eternamente dentro da gente. Já o que aconteceu de fato, documentado, fotografado, comprovado pela ciência e escrito com o nome de História – isso aconteceu do lado de fora da gente e, por isso, não acontece nunca mais. Está morto e enterrado no passado, e não há feitiço que faça ressuscitar. Mas aquilo que não aconteceu nunca, aquilo que só foi sonhado, é aquilo que sempre existiu e que sempre existirá, que nem nasceu e nem morrerá, e a cada vez que se conta acontece de novo....
Se ela me tivesse feito a pergunta de um jeito diferente, se me tivesse perguntado se acreditava na estória, ah!, eu teria respondido fácil: “Mas é claro que acredito!” Pois eu só acredito no que não aconteceu nunca, no que é sonho, pois os sonhos, é disto que somos feitos.
A estória da Branca de neve não aconteceu nunca – mas todos nós somos sempre, uma madrasta que se vê triste diante do espelho e manda a menina, nós também, para ser morta na floresta. A estória de João e Maria não aconteceu nunca, mas em toda a criança existe a fantasia terrível do abandono. A estória de Romeu e Julieta não aconteceu nunca, mas queremos ouvi-la de novo, pois dentro de nós existe o sonho do amor puro, belo e imortal. E é por isso que sou incuravelmente religioso, porque nas estórias da religião, que não aconteceram nunca, os sonhos e pesadelos da alma se acham refletidos. Acredito porque sei que são mentiras. Se fossem verdades, não me interessariam.
As estórias são contadas como espelhos, para que a gente se descubra nelas. Os orientais são os grandes mestres nesta arte, esquecida dos ocidentais porque cresceram, como o Peter Pan do filme Hook, e passaram a acreditar somente naquilo que a agenda conta, sem perceber que, porque ela diz a verdade, mente.
Quero contar para vocês a estória que mais tenho contado – não aconteceu nunca, acontece sempre. Um homem muito rico, ao morrer, deixou suas terras para os seus filhos. Todos eles receberam terras férteis e belas, com a exceção do mais novo, para quem sobrou um charco inútil para a agricultura. Seus amigos se entristeceram com isso e o visitaram, lamentando a injustiça que lhe havia sido feita. Mas ele só lhes disse uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”. No ano seguinte, uma seca terrível se abateu sobre o país, e as terras dos seus irmãos foram devastadas: as fontes secaram, os pastos ficaram esturricados, o gado morreu. Mas o charco do irmão mais novo se transformou num oásis fértil e belo. Ele ficou rico e comprou um lindo cavalo branco por um preço altíssimo. Seus amigos organizaram uma festa porque coisa tão maravilhosa lhe tinha acontecido. Mas dele só ouviram uma coisa: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte seu cavalo de raça fugiu e foi grande a tristeza. Seus amigos vieram e lamentaram o acontecido. Mas o que o homem lhes disse foi: “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” Passados dez dias o cavalo voltou trazendo dez lindos cavalos selvagens. Vieram os amigos para celebrar esta nova riqueza, mas o que ouviram foram as palavras de sempre: “ Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá.” No dia seguinte, o seu filho, sem juízo, montou um cavalo selvagem, O cavalo corcoveou e o lançou longe. O moço quebrou uma perna. Voltaram os amigos para lamentar a desgraça. “Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá”, o pai repetiu. Passados poucos dias vieram os soldados do rei para levar os jovens para a guerra. Todos os moços tiveram de partir, menos o seu filho de perna quebrada. Os amigos se alegraram e vieram festejar. O pai viu tudo e só disse uma coisa: “ Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá...”
Assim termina a estória, sem um fim, com reticências.....Ela poderá ser continuada, indefinidamente. E ao contá-la é como se contasse a estória de minha vida. Tanto os meus fracassos quanto as minhas vitórias duraram pouco. Não há nenhuma vitória profissional ou amorosa que garanta que a vida finalmente se arranjou e nenhuma derrota que seja uma condenação final. As vitórias se desfazem como castelos de areia atingidos pelas ondas, e as derrotas se transformam em momentos que prenunciam um começo novo. Enquanto a morte não nos tocar, pois só ela é definitiva, a sabedoria nos diz que vivemos sempre à mercê do imprevisível dos acidentes. “SE É BOM OU SE É MAU, SÓ O FUTURO DIRÁ”
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